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Minha mãe e os livros




- Miguel, meus livros acabaram.

É a frase que ouço, de três em três meses. É preciso repor arquivos no leitor de e-book dela. Com cuidado. Livros que não tenha lido (aqui o espectro se reduz cada vez mais). Porém seu gosto é muito amplo e lê em três línguas, isso facilita, ainda que o inglês venha se despedindo um pouco a cada dia do seu cérebro de 94 anos. Espanhol? Sempre me pede. Recorda perfeitamente letras completas de tangos, boleros, rancheiras, canções que ouvíamos quando morávamos em Bogotá. Eu mal consigo lembrar os títulos.

Quando começou a ter dificuldade de enxergar aos 85 anos, a maior tristeza não foi a de não poder assistir direito a TV ou questões práticas com os números miúdos dos boletos mensais. A maior angústia foi deixar de ler. Foi ficando cada vez mais difícil não ver o mundo, mas o pior era não ver mais o outro mundo, o de dentro de um livro. Um buraco na calçada não a deixava com mais medo do que não conseguir acompanhar com clareza uma história escrita num livro.

Foi um período pré-livro eletrônico, que a deixou triste. Meu irmão teve a ideia de lhe dar um leitor de e-book. A princípio não achou que se adaptaria a essa tecnologia; não conseguira se adaptar ao celular, nunca teve computador, teve um tablete que usou por um mês, depois deu ao meu sobrinho.

Antes, quando enxergava, eu lhe emprestava meus livros. Vários na biblioteca tem na última página uma anotação: “Já li”, com a letra bonita dela.

Escolho agora mais nove livros, um deles, a pedidos. Ligo o aparelho para transferir os arquivos. Na tela vejo palavras com letras tão grandes que muitas vezes ocupam duas linhas. É assim que ela continua lendo. É assim que ela continua me contagiando de voracidade leitora. Seu pedido foi este:

- Filho, põe o “Língua mãe”.

- É só uma primeira versão.

- Manda assim mesmo.

Meu primeiro romance, incluí então o arquivo. Começou a ler ontem e já devorou vinte páginas. Vou dedicar à ela. Dona Euzides ainda não sabe.

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