top of page

Os brasileños




A falta de memória ou a capacidade pequena, quase nula de me lembrar de coisas que aconteceram já nasceram comigo. Não é coisa da idade, nunca tive boa memória, portanto é difícil localizar um dia na minha infância que tenha sido particularmente mais feliz que os outros.

Minha memória, nem afetiva deve ser, pois há acontecimentos de muito prazer dos quais sei apenas que aconteceram, mas não exatamente como.

Talvez seja uma qualidade. Talvez possa, talvez precise inventar mais preenchendo as lacunas, os vazios deixados por esquecimentos sabe-se lá voluntários ou não.

Nasci no Rio, mas não me deram tempo de ser brasileiro. Com 11 meses meu pai, colombiano e minha mãe, carioca, se mudaram para Bogotá, no alto dos Andes há 2.600 metros acima do nível do mar, passei minha infância, até eles se separarem e minha mãe, meus três irmãos e eu voltarmos ao nível do mar 10 anos depois.

Cresci falando os dois idiomas, cresci em duas pátrias, quer dizer em minha pátria colombiana, espanhola paterna e minha mátria brasileira portuguesa materna. Porém eu vivia mesmo a cultura de Bogotá a cultura andina, a cultura do espanhol, a língua dos meus amiguinhos, da televisão, dos meus primeiros livros, do colégio e finalmente dos meus três irmãos bogotanos e que falavam menos português que eu, pois minha mãe me havia acostumado mais que a meus irmãos com a língua e até conversávamos um pouco em português, provavelmente quando ela sentia saudades do Brasil. Meu pai falava muito bem o português e também falava comigo. Eu sentia uma nostalgia, uma saudade de um lugar que não conhecia e onde apenas havia nascido. Era uma ligação muito ambígua com o Brasil e com a língua.

Falei tudo isso para dizer que alguns dos dias mais lindos da minha infância colombiana foram quando eu me senti brasileiro. Um se repetia uma vez por ano quando em casa chegava uma caixa mágica que minha avó brasileira, nos enviava com produtos do Brasil. Em uma ocasião chegaram duas caixas compridas que continham 20 chocolates de embalagem azul com o nome Bis escrito, era o gosto do Brasil para mim. Chegava também feijão preto que não havia em Bogotá, mas eu ligava mesmo era para aqueles pequenos paralelepípedos de chocolate que eu não mordia para que durasse mais na boca. O ano em que chegou um disco de um tal de Milton Nascimento e eu ouvi isso, acho que me tornei brasileiro e músico brasileiro ali naquele momento.

No último ano que vivi em Bogotá se jogou o mundial de 70 onde o Brasil foi tricampeão do mundo e todos os jogos passaram na nossa televisão. Ali o orgulho também me fez lembrar que eu era brasileiro. O dia da final depois do jogo, 4x1 para o Brasil contra a Itália, descemos eu e meu irmão para jogar bola com nossos amigos, mas a pelada já havia começado e ficamos de fora. Nesse dia havia uma turma de outra rua jogando com a nossa turma e eu e meu irmão ficamos esperando a vez para jogar sentados no meio fio; em um dado momento alguém da turma da outra rua, olhou discretamente em nossa direção e cochichou no ouvido de outro menino: “los brasileños”. Falou de um jeito solene e formal, não muito próprio de uma criança e meu irmão mais novo me olhou e acho que não soube entender, mas eu entendi. Entendi, ainda que vagamente que finalmente eu podia ser de dois lugares, descobri que dentro, tão dentro de mim que eu nem via, num dentro que ficava longe estava esse outro lugar que também era meu e eu não sabia.


9 visualizações

Posts Relacionados

Ver tudo

Perdidos

bottom of page